terça-feira, 8 de maio de 2018

[Escrita] Quem e como fala?

Olá, povo!

Como no último post eu falei dos elementos pré-texto hoje a gente vai aprofundar um pouco a questão dos personagens e falar um pouco sobre a voz -1ª, 2ª ou 3ª. Só lembrando que eu não sou nenhuma especialista nem nada, o que eu escrevo aqui é puramente minha própria experiência e algumas pesquisas de apoio que eu faço para os posts, okay? Então, vamos lá, pega um lanche que o post vai ficar grande!


OS PERSONAGENS

Para mim, uma das coisas mais difíceis é criar personagens. Isso porque não é simplesmente uma pessoa que faz uma ação, mas é a pessoa que vive aquilo que você idealizou e, como tal, ela precisa representar essa história, ter uma vida própria e uma personalidade que gere empatia - que é o mais difícil - ou pelo menos simpatia ao leitor. O mesmo acontece com os antagonistas que tem como intuito gerar o sentimento contrário. Esse despertar de sentimentos no leitor é o que eu acho mais complicado de reproduzir, porque criar um personagem marcante, que realmente faça ele sentir alguma coisa é especialmente complicado, por isso é necessário trabalhar os personagens com uma atenção especial.

Como eu mostrei no post passado, eu faço uma ficha do personagem bem simples, além de ser mais viável para mover na história caso eu precise rever algum detalhe, eu vou ter sempre em mãos um esboço prático de quem é o meu personagem. Bem no comecinho eu criava apenas criaturas sem muita vontade própria que se moviam conforme o acontecimento ou conforme eu agiria no seu lugar. O primeiro personagem que eu criei realmente alheio a mim mesma foi a Anelliese de Free e incrivelmente em 2012! Ela é um personagem que se move de acordo com a sua vontade, toma suas próprias decisões sem que eu a manipule, eu sei quem ela é e durante todo o processo de criação eu podia saber o que ela faria a cada acontecimento e que caminho ela escolheria independente da minha própria vontade, mas eu levei anos para conseguir isso (Considerando que eu comecei a escrever com 7 anos) e decorreu de muita prática e leitura constante.

O primeiro passo é você ver como os personagens dos livros que você mais gosta se movem, como eles vivem as histórias que você queria viver, o que eles tem que você precisa criar. O processo de escrever é, como disse Austen Kleon: "roubar uma ideia e torná-la algo inédito à sua própria maneira." O segundo passo é entender que o seu personagem, apesar de uma criação sua, é uma pessoa totalmente desvinculada de você, ele tem seu próprio pensamento e sua própria maneira de agir, é um ser independente. No momento que você puser isso em mente vai perceber o processo de criar uma personagem com outros olhos. Vejam que eu nunca disse que seria fácil, só disse o que eu faço. Isso requer muita prática e o velho método de tentativa e erro.

Vejam um exemplo de uma ficha de personagem minha preenchida:

Livro: ROMEO
Nome: Juliane Simons
Data de Nascimento: 1985/10/17 (23 anos)
Data de Transformação: -
Local de origem: Tennessee
Cor do Cabelo: Ruivo
Cor dos Olhos: Azuis
Altura: 1,67
Descrição Física: Magra, longos cabelos ondulados que descem até mais ou menos a linha da cintura, o rosto é arrendondado com olhos grandes e expressivos, lábios cheios e boca pequena. O nariz é relativamente afinado conferindo ao rosto um aspecto delicado e, ao mesmo tempo, levemente atrevido. As sobrancelhas são arqueadas e os cílios longos.
Habilidades especiais: -
Educação/Ocupação: Formou-se em literatura na Universidade de Harvard. É professora.
Hobbies: Ler
Veículo: -
Relacionamento de família/clã:É filha de Fabian Simons, que foi assassinada quando Julie ainda era criança, e Patrick James. Mora com a companheira de faculdade e melhor amiga Judith Scott.
História Pessoal: Julie nasceu em Unsun (cidade fictícia) no Tennessee, filha de uma artesã e um advogado. Aos oito anos encontrou a mãe morta sob uma poça de sangue na cozinha de casa, o pai entregou-a para uma tia em Chicago, apesar do que aconteceu ela nunca questionou o passado e cresceu detestando o pai que sequer ligava para o que acontecia com ela. Formou-se em literatura na universidade de Harvard onde conheceu Judith Scott, uma inglesa cheia de vida que convidou-a para dividir o apartamento. Quando recebeu a notícia do acidente do pai com possibilidade de morte, Julie viaja para Unsun e dessa vez, diante das perseguições e mistérios que rondam a cidade, ela se propõe a descobrir o que esconde por trás da morte da mãe.
Julie é uma personagem obstinada, meio teimosa e que convive com um medo muito grande de que pessoas se machuquem por sua causa por isso vive superprotegendo todos à sua volta. É um pouco indecisa e tem o péssimo hábito de achar que pode fazer tudo sozinha.

Há várias listas de personagem na internet, essa que eu uso é uma simplificação de uma que achei sem querer nas minhas pesquisas. Recomendo essa outra aqui clique aqui. Vocês podem pesquisar por outras caso essas não supram suas necessidades.

Dá para ver que é um resumo bem sucinto da personagem, a personalidade dela é algo que se molda na minha mente e nos meus dedos conforme eu vou colocando-a no meio dos acontecimentos. Mas eu sei quem ela é, o que ela faria ou fará em cada situação e isso me possibilita movê-la de acordo com a vontade dela, mas isso requereu muita prática e livros e mais livros de tentativas meio frustradas. Como mencionei, um exercício muito bom é escrever com um personagem do sexo oposto. A primeira vez que eu fiz isso foi na também saga Free, com o par de Anelliese, Ferdinan, que tinha voz no enredo, quando você dá voz à uma personagem com sexo oposto ao seu consegue desprender-se um pouco de si mesmo porque sabe que o outro sexo não agirá do mesmo modo que você, ele tem ações e pensamentos diferentes do seu gênero. Uma das minhas missões mais recentes com esse tipo de linguagem mista foi em Powerfull que escrevi como co-autora. Eu era responsável pela voz de Matt e Sharon meu casal na trama de 6 personagens. Acompanhe um trecho diferencial de vozes para ambos:
Maldito pneu! Justo agora tinha que estourar? Pensei enquanto permanecia na cadeira do fundo do ônibus desfrutando das músicas nos meus fones de ouvido. Em uma das poltronas do meio, estava ela. Jessica Mountbatten. Ela estava a viagem toda dando olhadas não muito amigáveis na minha direção, provavelmente nossos santos não se comunicaram muito bem à primeira vista, por mais que eu tentasse ignorá-la para manter a calma ela insistia. Aquilo definitivamente não ia prestar. Ela era demasiado bonita, os cabelos castanhos longos ondulados nas pontas, o rosto típico de uma patricinha americana, mas até que era estilosa, menos mal. Aquilo diminuía minha vontade de vomitar. A nossa chegada ao instituto provavelmente atrasaria em meia hora ou mais, decidi tomar um pouco de ar como a maioria dos esquisitões dentro do ônibus estava fazendo. Havíamos parado em uma estrada de Londres, de um lado floresta e do outro... Bem, do outro também. Era ladeada por enormes árvores e depressões, eu tinha de admitir que era um lugar lindo.
Para minha sorte todos ali eram um conjunto de nerds com QI acima de 190, então não haveria bullying por conta de diferenças intelectuais, em contra partida, talvez as nossas discussões pudessem ser mais interessantes se contarmos com o ponto de vista de todos nós podermos fazer algo que a maioria das pessoas não pode. Enquanto eu observava a paisagem e tentava me concentrar na pureza do oxigênio que invadia minhas narinas ele se aproximou. Nome, Mathew Iron. Habilidade: velocidade sobre humana. Não era o tipo de pessoa com a qual eu me relacionava, na verdade eu não me relacionava com ninguém – Careta. - ele era bonito, os cabelos castanhos levemente desalinhados, usava óculos, o que eu admitia achar um charme, um rosto afilado e era de certa forma forte, mas não o bastante para parecer um armário com pernas. (Sharon)
 Sharon é uma personagem meio arrogante, totalmente geniosa, antissocial e introvertida. Ela tem uma segurança exagerada de si mesma por causa de todos os impactos que sofreu no passado. Ela foi uma criação minha para a história, assim como o Matt foi a criação de um leitor cuja personalidade eu moldei de acordo com a ficha que ele enviou (era uma fic interativa). Então veja um dos diálogos dele:
Foi tudo tão rápido, quando pisquei os olhos Sharon e Jessica estavam suspensas no ar em uma briga para garoto nenhum colocar defeito ambas eram absurdamente poderosas e eu fiquei ainda mais perplexo e encantado por aquela loira marrenta. Calleb e Carl levaram Jessica para o ônibus, aparentemente ela não estava ferida, mas ainda estava desacordada. Não demorou muito mais que vinte minutos para que o pneu fosse trocado e continuássemos nossa viagem rumo ao instituto, Sharon ainda permanecia no mesmo lugar ouvindo músicas pelo fone e com os olhos fechados como se não tivesse acontecido absolutamente nada.
Eu observava os demais dentro do ônibus, Calleb dormia a maior parte do tempo, Lauren permanecia quieta, mas eu deduzi que não havia uma só gotícula de suor que seus belíssimos olhos não estivessem vendo, Andrew era um prolixo nato e pelo pouco que pude observar de Jessica ela era muito simpática e ativa, o que eu não conseguia entender era o que ela tinha contra a Sharon, eu observei a garota o caminho inteiro, ela não deu uma única palavra com ninguém, ficava parecendo uma estátua olhando pela janela enquanto ouvia sabe-se Deus o que. De qualquer forma a convivência entre nós estava prometendo! (Matt)
Conseguem perceber a diferença de linguagem entre eles? O modo como falam e pensam é diferente e de acordo com a personalidade deles. Matt é mais alegre e ativo que Sharon, por ter tido um passado relativamente melhor que o dela seu comportamento é como o de um garoto normal, sociável, cheio de energia e feromônios. Mover essa diferença entre os personagens é um desafio que precisa ser praticado diariamente. Na época que escrevi essa fanfic com a outra menina ainda estava aprendendo sobre essas coisas, se você olhar minhas histórias hoje vai ver uma drástica evolução, ainda assim, estou sempre aprendendo.

Exercício:

  • Considere a seguinte situação: 
Não via as horas. O tempo  parecia ter deixado de existir ou se resumido naquela existência de exatidão. O relógio deixou de ser importante, não ligava mais para o minuto seguinte. Não doía mais. O mundo se resumia em um montante de palavras que se assomavam na folha branca, a letra garranchada tentando acompanhar o pensamento. Inútil. Não existia pressão, não havia os desejos ou as expectativas de outrem, só as folhas, só as palavras, só seus inseparáveis amigos silenciosos que falavam com o íntimo do seus pensamentos.

O mundo finalmente alinhou-se aos seus sonhos, tornou-se tinta, imprimiu seu mundo, protegeu seu coração. Em um canto da mesa as cartas ainda por abrir, a foto solitária no porta-retrato de vidro e a imaginação que voava solta pelas paredes do quarto branco, simples, sem detalhes demais, tranquilo como seu espírito. Todos os seus medos abrigaram-se do lado de fora da porta de ferro, assim como as pessoas. Os estranhos ali não lhe notavam e os que o faziam não lhe apontavam dedos críticos, não exigiam suas expectativas frustradas, não lhe tratavam como um objeto defeituoso. Para eles, ela era uma pessoa; para ela, no âmago do seu ser escondida na paz da alcova alva, uma criadora.

As palavras eram suas ferramentas, a folha o alicerce de sua construção, o seu mundo, o seu eu. Eram um só, ela e as palavras, naquele mundo de loucos que precisava de abrigo, naquele lugar onde as esperanças pareciam perdidas, naquele campo branco de bonecas feridas, ela encontrara o descanso para seu espírito, a liberdade para suas palavras, a quietude para seu coração, a calma para sua doe, a segurança para os seus medos.

E na clínica de bonecas, com damas de branco e almas dolorosas, uma nova história acabava de ser criada.
  • Reescreva a passagem na voz de um garoto em 1ª pessoa e de uma garota também em 1ª pessoa. Dependendo do seu gênero você vai ver que não é tão fácil quanto pensa principalmente considerando esse enredo incompleto. Mas imagine o que há por trás disso. 

QUEM CONTA A HISTÓRIA?

Criar personagens não é o pior dilema de quem vai escrever uma história, mas é um decidir quem vai contá-la é outra coisa que gera problema. Não dá para dizer qual das vozes é a mais adequada, há coisas que você precisa pesar para decidir em que pessoa contar sua história. Há autores que não conseguem, sob nenhuma hipótese, narrar em 1ª pessoa e outros em 3ª isso varia muito do que te deixa confortável e do que você quer dizer. Particularmente, eu narro dos dois jeitos, normalmente é a história que me pede uma voz ou outra, eu a trabalho inicialmente dos dois jeitos e vejo qual fica mais de acordo com o que eu quero dizer. Para clarear um pouco mais, vamos fazer uma comparação entre as vozes nos aspectos gerais.

Primeira-pessoa (eu)

O narrador é um personagem participante da história. Esse narrador, que pode ou não ser o protagonista, compartilha seus pensamentos e emoções durante a história, mas não conhece (e portanto não pode compartilhar) os pensamentos e emoções de outros personagens. A narrativa na primeira-pessoa aprofunda o conhecimento do leitor sobre o personagem-narrador, já que mostra muito sobre sua personalidade através da forma como ele escolhe narrar os acontecimentos do enredo. Suas falas ganham um status de autenticidade, já que não existe um narrador anônimo intermediando o contato do leitor com o personagem. O foco da narrativa na primeira-pessoa é influenciar o leitor a interpretar a história a partir do ponto de vista deste personagem.
Dom Casmurro, Crepúsculo, O Morro dos Ventos Uivantes e O Pequeno Príncipe usam esse tipo de narrador.

Segunda-pessoa (você)

O narrador reconhece a existência do leitor referindo-se a ele diretamente ou mesmo o tratando como um personagem que deve aceitar seu papel na história passivamente. O foco da narrativa na segunda-pessoa é permitir que o leitor se sinta fazendo parte da história, diminuindo a distância entre ele e o narrador.
Pode-se dizer que As Vantagens de ser Invisível usa esse tipo de narração uma vez que nos sentimos o amigo de Charlie.

Terceira-pessoa (ele)

Nesse ponto de vista, o narrador não participa da história. Ao invés de um personagem, é o próprio escritor quem está contando a história para o leitor. O escritor não precisa se limitar a narrar a partir do ponto de vista de um único personagem e pode mostrar diferentes percepções sobre os acontecimentos do enredo ao longo do texto. O narrador na terceira-pessoa pode ser seletivo (quando expressa onisciência em relação a apenas um personagem) e múltiplo (quando expressa onisciência em relação a vários personagens). O grau de conhecimento que o narrador expressa sobre os personagens pode variar entre neutro (conta a história sem fazer comentários sobre o que está narrando) e instruso (quando além de narrar, ele também comenta o que pensa sobre os acontecimentos do enredo e as emoções e pensamentos dos personagens). O foco da narrativa na terceira-pessoa é permitir que o leitor tenha uma visão mais plural da história. Ela nos dá mais flexibilidade para entrar e sair da mente dos personagens, para narrar detalhes da história de uma forma mais criativa.
Os Instrumentos Mortais, Fallen, Sussurro e Alice no País das Maravilhas adotam esse estilo narrativo.

Ponto de vista alternado

Alguns escritores optam por narrar na terceira e na primeira pessoa em uma única história, alternando entre um narrador onisciente, mais distante, e um narrador-personagem, mais próximo. Outros escritores usam apenas a narrativa na primeira pessoa, alternando entre dois ou mais personagens-narradores. O foco da narrativa de ponto de vista alternado é permitir ao leitor tomar contato com a história a partir de diferentes pontos de vista e compará-los para tirar suas próprias conclusões sobre o que está sendo narrado.
Dezenove Luas, Entre o Agora e o Nunca são exemplos de livro com esse tipo de narrativa. Harlan Coben é um escritor que utiliza muito o tipo alternante entre primeira e terceira pessoa.


Quando eu escrevi Sombras ao Sol, achei que limitar a história na visão de Sofia seria ideal para o enredo que eu imaginei, do mesmo modo que, quando escrevi Dear Diary alternei a narração entre os dois personagens como forma de demonstrar o universo de cada um como uma maneira de aproximá-los do leitor e justificar suas atitudes, eles não sabiam porque o outro agia de tal maneira, mas o leitor tinha esse conhecimento e, dessa forma, podia acompanhar como cada uma das personagens se descobria. Já para Folhas Mortas eu utilizei uma alternância em terceira pessoa predominante com enxertos de primeira pessoa, porque a história me permitia essa alternância. Para escrever Avalanche e Dragão Azul eu utilizei a terceira pessoa porque a onisciência do narrador cairia melhor com o tipo de enredo que eu me propus. Pode parecer uma besteira, mas escolher a voz com que contamos a história faz toda a diferença na composição final do livro.


Então, até a próxima!

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